google.com, pub-5297207495539601, DIRECT, f08c47fec0942fa0 Vila Espanca: O cantor lírico que não troca Vila Franca de Xira por Londres

O cantor lírico que não troca Vila Franca de Xira por Londres

Nota do Editor: O Nosso 'Alter Ego' foi entrevistado para o Semanário Regional 'O Mirante' um reconhecimento mais que justo a um dos artistas da nossa terra. Apreciem:

Marco Alves do Santos tinha dez anos quando um professor de música, cego, reparou que o menino tinha uma vocação para a arte. Experimentou piano e trompete, mas o dom era afinal a sua própria voz. O cantor lírico, que já passou por algumas das maiores salas nacionais e internacionais, vive no Bom Retiro, Vila Franca de Xira. É um apaixonado pela terra que não trocaria por Londres. Os vizinhos ouvem com admiração o repertório do tenor, mas reconduziram-no no cargo de administrador de condomínio pelos também reconhecidos dotes na bricolage. Vive sozinho, não tem carta de condução e o comboio é o seu meio de transporte preferido. Tem o sonho de construir uma casa no campo e cultivar os seus próprios alimentos.


O professor de música do externato que Marco Alves dos Santos frequentava em Vila Franca de Xira era cego, mas o dom do menino não escapou ao mestre de ouvido apurado que pressentia as tropelias dos alunos que fugiam de uma ponta à outra do coro para desconcertar o mestre. Marco Alves dos Santos acreditava, tal como os outros meninos, que o professor ouvia tão bem as crianças porque tinha um olho escondido atrás da cabeça. Foi o mesmo professor que um dia mandou chamar a mãe do futuro tenor. Pressentia-lhe um talento e aconselhou uma escola de música. A mãe assim o fez e o menino, aos dez anos, ingressou no Instituto Gregoriano, em Lisboa. Experimentou piano, depois trompete, mas era afinal a voz o dom que anos antes se tinha revelado.

A aventura implicou um grande esforço familiar. A mãe tirava duas tardes de trabalho por semana para o acompanhar até Lisboa. Apanhavam o comboio na cidade e a viagem era aproveitada para o almoço dos dois que a mãe levava bem acondicionado numa caixa de plástico. Aos 14 anos Marco Alves dos Santos começou a viajar sozinho.

O apartamento no Bom Retiro, em Vila Franca de Xira, é hoje, como já era na altura, o refúgio. Foi ali bem perto, na rua, que jogou ao berlinde, andou de bicicleta, jogou futebol, fabricou o próprio equipamento desportivo e construiu casinhas nas árvores com os despojos de outros. “Apesar de já não ser da geração que cresceu apenas com um brinquedo também não sou da geração que tem o quarto cheio de brinquedos”, diz ironicamente.

Foi nascer por acaso a Lisboa, mas sente-se filho de Vila Franca de Xira. A mãe, antiga escriturária da empresa Progresso do Ribatejo, está reformada. O pai, que faleceu quando Marco Alves dos Santos tinha 20 anos, trabalhava para a Câmara Municipal de Santarém. A mãe foi uma educadora rígida. Controlava os trabalhos de casa entregues a tempo e horas e Marco Alves dos Santos agradece hoje aquilo que na altura lhe soava a marcação cerrada. A disciplina foi determinante para a sua formação como pessoa.

Estudou na Escola Reynaldo dos Santos, mas ao décimo ano rumou a Lisboa para frequentar a D. Pedro V que tinha área vocacional de música. Tinha 16 anos. Foi lá que encontrou uma professora talhada à antiga que a turma odiou na primeira semana e amou o resto dos dias. “Não era alguém que tivesse ido parar ao sistema de ensino porque não havia mais nada para fazer”, comenta. A disciplina brutal, sem contemplações, era depois compensada com um imenso saber. A turma não era fácil a começar pelo futuro tenor que muitas vezes destabilizou por ser conversador.

No coro do externato começou a cantar aos seis anos. Os espectáculos surgiam nos períodos festivos do ano lectivo. “Eram as que hoje se designam por actividades extra-curriculares, mas que deviam ser curriculares”, analisa. O estudo da música, desenvolvido paralelamente à escola, foi-se intensificando. No 10º ano e 11º ano tinha 11 disciplinas na escola secundária e mais sete no Instituto Gregoriano. Fazia um total de 18 disciplinas. “Passei a todas e não morri, mas quando chegava a períodos de férias, no Natal e no Verão, passava três semanas a dormir doze horas por dia”, recorda. Cantava ainda no coro “Notas Soltas” e tocava trompete na banda do Ateneu Artístico Vilafranquense. “As pessoas têm que fazer sacrifícios na vida se querem atingir aquilo que pretendem”, justifica-se.

O canto surgiu quase por brincadeira quando estava a estudar trompete no Conservatório Nacional de Lisboa. Uma das professoras do coro levou-o à presença do professor Fernando Eldoro com quem se iniciou na música de câmara. O estudo do trompete foi ficando um pouco para trás e o canto ganhou terreno. Depois de estudar no conservatório ingressou na Guildhall School of Music and Drama, em Londres, com uma bolsa da Fundação Gulbenkian.
O pai, que faleceu quando o tenor tinha 20 anos, assustou-se inicialmente com a opção da música. A mãe foi e será a fã número 1. O solista profissional desde 2004 é um cantor de duche, admite entre risos. Os vizinhos ouvem ecoar o repertório do tenor e acompanham-no com admiração. Os lamentos ouvem-se sobretudo quando os temas são complexos que obrigam à repetição de várias notas. “É tramado ser-se vizinho de alguém que está a cantar uma coisa em Checo durante quatro horas por dia. Às vezes é difícil até para mim”.

Ainda assim foi reconduzido no cargo de administrador do prédio, diz com graça, já que os vizinhos lhe reconhecem também os méritos na bricolage e arranjos caseiros. Está especializado na mudança de lâmpadas. Aos 36 anos, tal como na adolescência, altura em que usava cabelo comprido e calças de ganga justas, continua a fugir à formatação excessiva imposta pela sociedade. Um homem não pode mudar o mundo, mas alguns homens já mudaram uma parte substancial. Há que mudar o que está ao alcance de cada um. Nem que seja voltar a assegurar que há luz na entrada do prédio ou ajudar a vizinha com o saco de compras.

O tenor que quer semear legumes no campo

Já foi o bruxo de Hansel & Gretel, mas a personagem mágica que encarnou foi Tristão, companheiro de Isolda, com encenação de Luís Miguel Cintra, uma das suas referências de trabalho. O cantor actor Marco Alves dos Santos, que já passou por algumas das mais importantes salas nacionais e internacionais, é camaleónico (em palco), inteligente, bem-humorado e descontraído cá fora. Veste fato de treino e sapatilhas. Usa o cabelo louro comprido a cobrir-lhe os ombros. Não tem carro nem carta de condução. É adepto do comboio. O inter-regional, assegura, é o melhor transporte para chegar até à Covilhã. Sempre que o faz leva a janela aberta e vai concentrado na paisagem.

Escolheu não ter filhos numa sociedade direccionada para os bens materiais, mas também porque a profissão não lhe garante uma vida financeira desafogada. Os amigos estão a ser pais e Marco Alves dos santos sente-se feliz com o sorriso das crianças dos outros.

Em primeiro lugar é essencial à condição humana fazer-se alguma coisa de que se gosta, refere antes de começar a falar das pessoas ricas que são pobres e dos que são pobres mas têm apesar de tudo uma vida rica. A fazer algo de que não gostasse só para receber muito dinheiro não se aguentaria mais de dois ou três anos Já recusou espectáculos de entidades que querem pagar tanto como uma associação coral. Tem a noção do valor justo do seu trabalho, tal como admite ter potencial de bom cozinheiro, mas ainda não muito desenvolvido.

Está a ler um livro técnico sobre poker. Os jogos estratégicos interessam-lhe. Já praticou xadrez. Gosta de livros de conteúdo metafísico, espiritual, mas também do fantástico e de alguma ficção. Conheceu recentemente a obra de José Régio, em virtude de um trabalho que está a preparar, e espantou-se com a profundidade do autor lido num tempo em que o grau de superficialidade é cada vez maior e em que as palavras se usam vazias da verdadeira dimensão.

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Vive sozinho na casa dos pais que a família comprou. Admite que não tem o sentido de posse, mas também não tem créditos. É um ás da limpeza e bricolage caseira. Não trocaria o andar do Bom Retiro por um apartamento no Parque das Nações. Venderia, isso sim, o apartamento no Parque das Nações para construir uma casa para os lados das Cardosas. É o seu sonho secreto. Ter uma casa no campo e plantar os próprios legumes.

Um café no solar de Santa Sofia depois de uma noite de espectáculo. Alverca cheira a subúrbio, diz o tenor que considera que Vila Franca ainda preserva as tradições

Sempre que termina um espectáculo em Lisboa os colegas de trabalho do cantor lírico Marco Alves dos Santos têm por hábito jantar na capital, mesmo os que lá não residem. Com o tenor que mora no Bom Retiro, em Vila Franca de Xira, acontece exactamente o contrário: “O que eu quero realmente é vir para casa tomar banho e sair para ir beber café ao solar de Santa Sofia. É um sítio onde gosto de estar com as pessoas simples, onde me sinto bem, onde não há burburinho, confusão e restaurantes grandes”, confidencia.

Marco Alves dos Santos diz por piada que é em Vila Franca de Xira que começa a província. “Em Alverca ainda cheira a subúrbio de Lisboa. Soa a saída de auto-estrada, a prédios enormes. Apesar de Vila Franca ser um grande dormitório de Lisboa vive ainda um ambiente rural e preserva muitas tradições. É uma cidade cosmopolita – que recebe convidados que vêm aqui falar – mas continua a ver campinos e cavalos”. Para muitos lisboetas falar em Vila Franca de Xira, que está a 20 minutos de distância, é quase como falar na longuínqua cidade de Tomar, concelho de onde é oriunda a mãe do tenor.

É um vilafranquense de corpo e alma. Não lhe peçam para defender as toiradas, mas não o convençam da mesma forma a lutar contra uma tradição da terra. “Se fossem interditas as toiradas não iria manifestar-me para a rua, mas também compreendo que uma tradição não pode ser varrida por mais ou menos bárbara que possar ser considerada. Não tomo o partido de uns nem de outros”.

É sobretudo um fã das pessoas de Vila Franca de Xira, cidade que tem uma espécie de magnetismo.

“Morei em Londres durante quatro anos e jurei para nunca mais. É uma cidade interessantíssima, mas para visitar”, diz quem assegura que não trocaria a sua Vila Franca pela cidade inglesa. “Ainda há sítios onde posso ir beber café e pagar no dia a seguir. Se não tenho trocado pago depois. É uma questão de confiança. Aqui as pessoas vivem de uma forma mais calma”.

Os amigos continuam a achar, tal como na altura em que foi estudar para Lisboa, que a profissão de tenor é exótica. Marco Alves dos Santos só se aborrece quando lhe pedem para cantar um pouco, como quem quer divertir-se com uma qualquer habilidade. “Isso ainda hoje me enerva. Prefiro que as pessoas me vão ver em concerto”. Habilidade não pode ser confundida com talento diz o actor cantor que assegura que são precisos anos de trabalho para singrar e que um artista não se faz na televisão e com um curso de seis meses em Londres. Para se experimentar a sensação de se ver uma ópera não chega ver na rua um habilidoso a trautear “La donna è mobile”.

Fonte: O Mirante

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“Se há característica irritante em boa parte do povo português é a sua constante necessidade de denegrir e menosprezar o que é feito dentro de portas. Somos uma nação convicta de que nada de bom pode sair da imaginação do português comum e que apenas o que nos chega do exterior é válido e interessante.”