Esteiros é o nome de um romance integrado na estética do neo-realismo sobre o trabalho infantil na vila de Alhandra, cujo autor é Soeiro Pereira Gomes.
A obra é uma ficção que narra a vida de jovens trabalhadores nas margens dos esteiros do Rio Tejo qie fabricam peças de barro nos telhais. Um grupo de garotos está no cerne da obra, sendo três personagens as mais expressivas: o estudioso Gaitinhas, o revoltado Gineto e o menino de rua Sagui.
Ainda que, em vários momentos, a obra se revele de um pendor maniqueísta (numa contraposição definitiva entre ricos e pobres), trata-se de uma obra-prima da narrativa lusitana da primeira metade de século XX. Isso confirma-se não apenas pelo estilo apurado e lírico do autor, mas, também, pelo tratamento rico e simbólico que ele oferece a uma temática que lhe era cara.
Esteiros é, sem favor, um romance síntese da melhor produção neo-realista em Portugal.
ESTEIROS
Soeiro Pereira Gomes
Soeiro Pereira Gomes
"Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro."
OUTONO
Fecharam os telhais. Com os prenúncios de Outono, as primeiras
chuvas encheram de frémitos o lodaçal negro dos esteiros, e o vento agreste
abriu buracos nos trapos dos garotos, num arrepio de águas e de corpos.
Também sobre os fomos e engenhos perpassou lufada desoladora, que não
deixava o fumo erguer-se para o alto. Que indústria como aquela queria
vento, é certo; mas sol também. Vento para enxugar e sol pra calcinar —
sentenciavam os mestres. Mas o sol andava baixo: não calcinava o tijolo,
nem as carnes juvenis da malta.
Menos por isso que pela fraqueza das vendas, os patrões não
quiseram arriscar mais dinheiro nas fornadas. — Ano mau... Todos os anos
se dizia o mesmo. Desde que apareceu a telha francesa, e o bloco de
cimento levou tudo de mal a pior.
— Indústria pobre, Sr. Castro — chorava-se Zé Vicente ao pagar a
renda do terreno. — Indústria pobre...
E era. Desde os garotos maltrapilhos aos valadores que vinham de
muito longe — sete horas de comboio, a sonhar jornas impossíveis. Por isso,
agora, o dia 7 de Setembro passava despercebido, sem festa. Dantes, era
sagrado. Recebia-se a féria, pagava-se os fiados de três meses e festejavase
a despedida. O s moços queimavam o resto das energias na
ornamentação do telhai; arranjavam instrumental de latas e cegarregas;
desfilavam em cortejo. E, enquanto o caniço verde dos esteiros ondulava no
alto dos fornos, as canas secas dos foguetes subiam ao céu. Patrões e
mestres sorriam, seguros da conciliação; moços e valadores cantavam,
ansiosos de melhor vida.
Bons tempos, aqueles! Os mestres ainda berravam, como dantes:
«Eh, gente! Vamos ligeiro, que esta fornada é o resto.» Mas a cadência dos
passos não se alterava, porque o pessoal já sabia que ia pagar o descanso
com sete meses de privações.
Assim ficaram as eiras desertas. Apenas no Telhai Grande havia ainda
algumas dezenas de tijolos que o mestre mandara pôr em fio, por causa do
tempo ruim. E, mesmo esses, depressa iriam engrossar as arrumas, bem
cobertas de telha, e mais volumosas que quaisquer duas moradias da malta
dos telhais.
Ali se guardava o suor de um Verão de fadigas. Vento e sol; fadigas e
suor — era o que os telhais queriam.
No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com
gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras;
mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria
a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinhos. Por isso, a
alegria dos rapazes punha em apuros o mestre, à hora do pagamento.
— Se não se calam, racho um! — vociferou ele, avançando para a
porta da barraca.
Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximos recuaram, temerosos.
Mas logo Gineto gritou de longe: — O melhor é matar-nos!
— Para quê, pá? Só levava ossos... — comentou Sagui, indicando o
corpo enfezado.
— Ou calam-se, ou paro com isto!
Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira. E a Feira era a
verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de
pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia. O pagamento prosseguiu.
— Malesso!
— Pronto — e agitando na mão o dinheiro recebido exclamou: — Este
é pró fato novo...
— Novo de há dois anos, aldrabão — casquinou Gineto. — Amanhã é
que se vê.
— Sagui! —chamou o mestre.
— Cá estou.
Detrás, um companheiro perguntou:
— Vais comer todos os bolos da Feira co'isso? — Se cá couberem...
Bateu na barriga, e a malta riu. Sagui era pequeno, mas tinha fama de
comilão.
Só fama...
O mestre continuou:
— Guedelhas!
— Pronto.
O moço saiu cabisbaixo, a contar a féria que os irmãos e
o pai, desempregado há dois meses, esperavam. Os companheiros sabiam
disso, e não gracejaram.
— Gineto!
Sem responder, o moço adiantou-se, devagar.
— Tiveste sorte, hem! — disse o mestre com ironia. — Desta vez
deitaste fora a temporada.
— Foi por gostar muito de você.
Frente a frente, olharam-se com raiva.
— Malandro... — rugiu o mestre.
— Cão! — ripostou Gineto. E saiu lépido, empurrando os
companheiros.
Um destes gargalhou:
— Foge, Gineto.
— Foge o quê, pá? — estacou ameaçador. — Se ele me comer, tem
que me largar pelo rabo. Que julgas?
O outro calou-se, amedrontado, e Gineto seguiu caminho, maldizendo
o mestre e o telhai.
Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros
todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho. Já assim fizera
em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.
— Mestre: tome-me conta deste fidalgo.
Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos
esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na
outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados
desconhecidos. A noite, esperava-o a tareia do costume, em vez da ceia, e
na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.
Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera,
toda madeira e lata, viam-se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos
barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto
sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os
esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém,
se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe
pela cinta — era junco — e o lixo era lixo, apenas. Começaram então as
fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: «Toma-me conta do
pequeno!» Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os
garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois
com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já
era mau e temido. Amigos tinha-o s às vezes nos companheiros que
precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos
em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.
Desta vez, porém, foi dominado pela Feira. Queria desforrar-se nos
cinco dias festivos, sem os berros dos mestres e as pancadas do pai. Iria ver
os acrobatas do circo; daria tiros ao canhão e passeios nos cavalinhos. E até
havia de estancar o ardor do sangue, dentro das barracas de reposteiros
vistosos, onde mulheres pintadas vendiam refrescos e beijos. Seria senhor
da Feira e do seu destino; livre, como um homem.
Mas era preciso dinheiro, e então ficara no telhal. E, como um homem,
vendeu os braços para que o dinheiro tilintasse agora no bolso das calças.
Gineto sentia-se tão feliz que não se lembrou das lágrimas que a mãe havia
de chorar por ele e pela féria da semana. Subiu o beco do Mirante a assobiar.
As quintas estavam ali em frente a retalhar os vales e a seduzir olhares. O
sol, ainda alto, tomava mais branco o branco dos muros e revivescia com
reflexos doirados as folhas estioladas das videiras. Mas Gineto não receava a
luz da tarde. Tinha a certeza que os caseiros não estariam de atalaia, entre
os pomares, porque a melhor fruta já fora apanhada. O moço do telhal sabia
de colheitas.
Todavia, chegado à estrada, hesitou. Pela primeira vez as suas
quintas — suas, como ele dizia — não o atraíram. A Feira afagava-lhe o
pensamento; o dinheiro tilintava no bolso... Era livre, sem a perseguição dos
caseiros e cães de guarda... Não iria às uvas.
E seguiu estrada fora, antegozando a Feira. Festeiro de pés sem botas
e calças com fundilhos, porque não tinha, como o Malesso e outros, um fato
de feira para estrear.
Editora CAMINHO
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