Toureou em mais de mil corridas, foi colhido por toiros e fintou a morte. Sempre preferiu os charutos e sombreros atirados para a arena, às flores. Aos 53 anos o matador Victor Mendes - que em 2010 tomou as rédeas da Escola de Toureio José Falcão – confessa querer passar menos tempo na arena para se refugiar no salão de baile. Aprender a dançar é um dos projectos de futuro do toureiro. O outro é acabar o curso de direito.
Quis retirar-se da vida de toureiro mas acabou por voltar às arenas. Porquê?
Impressionava-me o facto de muitas figuras do toureio da minha época se retirarem e voltarem alguns anos depois. Pensava que poderia passar ao lado disso, mas é-me impossível. É a minha necessidade de me encontrar com o público. Nunca existe verdadeiramente uma retirada.
Mas a arte de tourear não se compadece com esta hesitação.
Não há hesitação. Saí uma vez, em 1998. Depois de ter toureado em 1300 corridas. Estive 18 temporadas no activo, 14 das quais no grupo especial dos matadores de toiros mais cotados a nível internacional. Depois disso voltei a tourear, mas em corridas de toiros com um significado histórico. A primeira corrida de toiros da nova praça de toiros do Campo Pequeno, a do centenário da praça de toiros de Vila Franca de Xira…
Aceitou o desafio de ficar à frente da escola de toureio José falcão e apontou desde logo a falta de disciplina e técnica.
Hoje em dia encaramos as coisas de forma pouco exigente. Qualquer artista deve procurar incessantemente ser o melhor. Isso tem que ser feito com muita entrega, trabalho e dedicação. O bailarino [Mikhail] Baryshnikov, um dos históricos do ballet clássico, disse uma vez em entrevista que todos o consideravam o anjo que voava, mas ninguém sabia os milhares de horas que passava a treinar e a deformação dos pés que sofria. Podemos ter talento, mas tudo isso tem que ser trabalhado.
Como olha para estes jovens que hoje ensina?
Estes jovens têm possibilidades muito maiores. Há 50 ou 60 anos nós buscávamos o bem-estar. Éramos mais rurais, éramos mais essência, éramos mais sangue…
Eles têm a vida mais facilitada para ser toureiros?
Têm. A escola da minha época era a escola da boleia para ir aos tentaderos. Era a escola da oportunidade de ouvir uma dica de um maestro.
Antevê uma figura para breve dentro deste grupo de jovens?
Estamos no campo das hipóteses. Antevejo todos e não antevejo nenhum. São muitas as circunstâncias que influenciam. Não basta aos jovens estarem preparados fisicamente. Alguns, de repente, apercebem-se de que isto é muito mais sério do que pensavam. Uma das coisas mais bonitas é ver que alguém toma consciência da seriedade de algo em que está envolvido. A desistência às vezes não é algo de negativo. O mundo dos toiros, como outros mundos relacionados com o espectáculo, tem mais vencidos que vencedores.
Os grandes toureiros não passaram por uma escola.
Nós hoje em dia não temos paciência. Antigamente, há cinquenta anos, esperávamos pelos toureiros. Daí que muitos deles aparecessem aos 30 anos. As carreiras profissionais eram mais curtas. Oito ou dez temporadas vividas com intensidade. Agora começamos a ensinar miúdos aos 10. Se tiverem aquele talento aos 19 anos começam a surpreender-nos.
O Victor não passou por uma escola.
Por isso é que fui matador de toiros aos 23 anos. Se tivesse passado por uma escola certamente o teria sido aos 17. Deus não aporta a todos a inteligência, o brilhantismo, a capacidade. Nem todos os que frequentam a escola José Falcão sairão dali profissionais do toureio, mas estou a criar algo fundamental para a subsistência do espectáculo: aficionados.
É muito exigente com os jovens da escola de toureio. Aplica alguns dos conhecimentos da tropa? É assim com os seus filhos também?
A experiência de comandar homens na tropa foi muito gratificante. Se dois ou três homens não eram capazes de acompanhar os outros interrogava-me sobre a forma de conseguir motivá-los. Na escola de toureio é um pouco isso que se procura. A exigência não implica entrar na radicalidade. Sou exigente, mas também reconheço o que é bem feito. Aos meus filhos faço o mesmo.
O toureio é uma figura muito assediada.
Penso que isso tem que ver com algo que se diluiu muito ao longo das últimas três décadas - a masculinidade. O homem modificou a sua posição na sociedade face ao avanço da mulher dentro destes radicalismos tristes que o feminismo assumiu. É evidente que o sexo feminino é diferente do sexo masculino e vice-versa, mas é a simbiose dos dois que garante a continuidade da humanidade, reconhecendo embora que sempre existiu a homosexualidade. Essas pessoas têm o direito a essa felicidade, mas têm que saber respeitar-se.
Quando ouve um homem dizer que partilha as tarefas domésticas isso soa-lhe a falta de masculinidade?
Não necessariamente. Eu mesmo colaboro quando é preciso. Os meus filhos sabem fazer a cama, estrelar um ovo e pôr a mesa e não é por isso que deixam de ser masculinos. Não se trata aqui da falta de masculinidade intrínseca do homem. É a presença da mulher que tira essa masculinidade. A agressividade feminina transformou o próprio homem.
Então o problema é delas?
A posição do sexo masculino na sociedade diluiu-se um pouco mais, o que é positivo por um lado, mas penso que se exagerou. A mulher acaba por assumir hoje em dia um papel muito mais agressivo e mais liberal.
As mulheres são mais agressivas hoje em dia?
Têm mais ambição e são tremendamente mais cruéis entre elas. Quer no âmbito profissional quer no âmbito sentimental.
Onde gosta de ver as mulheres numa praça de toiros? Na arena ou na bancada?
Dentro de uma praça de toiros, na bancada. A partir de um certo nível a questão física condiciona muito o ente feminino. Na cara de um toiro com 550 quilos em pontas. Entramos no campo da aberração e do perigo iminente.
Mas o perigo existe para o homem e para a mulher.
O perigo está aí para todos, mas se tivermos nesta situação 100 mulheres e 100 homens provavelmente passarão 80 homens e apenas 20 mulheres. Estão sempre mais condicionadas.
E no toureio a cavalo?
No toureio a cavalo diluem-se muito mais as coisas e é sobretudo a perspectiva psicológica e o conhecimento que jogam.
Tem um pequeno museu em casa. Tal como o tem o toureiro Mário Coelho. Em Vila Franca de Xira têm que ser os toureiros a fazer os seus próprios museus?
Houve quem entendesse, e muito bem, fazer um museu de índole pública. Outros optaram por vender o espólio por circunstâncias da vida. Outros, como eu, fizeram um museu apartado do contexto da família. Penso que a senhora presidente da câmara tem em mente um projecto do tipo. Não só de matadores de toiros, mas de outros profissionais. Seria espectacular, mas não me preocupo muito com essas questões.
A que dedica os seus tempos livres, que são maiores agora?
O que a leva a pensar que tenho mais tempo? (risos) A diferença é que procuro desfrutar mais das coisas. Tenho a escola de toureio e quero ver se termino o curso de Direito que deixei por concluir. A outra coisa que quero fazer é mais fácil: dançar. Sempre pensei ir para uma escola de dança. Já falei com a minha mulher e até nos rimos juntos. Quero aprender tudo. Desde o fox trot à valsa, que já sei dançar.
Há pouco dizia aos seus alunos que o toureiro dever ser quase como uma bailarina.
Há muito de força, de agressão e de animal na cara de um toiro. Eu próprio já tive que abrir mão de um pouco desse lado animal - que o homem guarda em si também - mas com o tempo, com o prazer de tourear, com a sensibilidade e segurança é a naturalidade e a estética que predominam. Tal como no ballet a pose é fundamental. O toureio hoje em dia é mais estético que nunca.
Qual é a diferença entre entrar numa praça de toiros aos 20 e aos 50 anos?
Agora entras numa praça mais consciente que nunca do que podes arriscar. Aos 20 anos entras com ambição e uma vontade de superar tudo e todos. Essa ingenuidade da juventude determina também que alguns fiquem pelo caminho. Quando és mais maduro podes fazer a diferença com três ou quatro coisas. É outra intensidade.
Qual foi o objecto mais emblemático que lhe atiraram para a arena?
Não era das flores que eu mais gostava, mas dos charutos. Via em certos livros antigos de tauromaquia que em princípios do século XX a categoria e triunfo dos toureiros era determinada pela quantidade de charutos e de sombreros que os aficcionados atiravam para a praça. Às vezes ficava com uma única flor, mas se me atiravam um charuto era a primeira coisa que agarrava.
Até que idade se vê a entrar numa arena?
Vejo companheiros que abdicaram dessa liberdade por várias circunstâncias. Ou por imposição da mulher, por questões físicas ou por recearem a crítica. O artista deve estar sempre acima destas coisas. Desde que se sinta feliz tem o direito de o fazer. Claro que também temos que ter consciência do sentido do ridículo. Tens que avaliar todas as questões. Podes até exercer essa liberdade mas no dia seguinte arriscas-te a ter as malas à porta.
Um toureiro nunca se despede das arenas para sempre
Um dos melhores matadores de toiros de sempre, Victor Mendes, está desde o início de 2010 na direcção técnica e artística da Escola de Toureio José Falcão, em Vila Franca de Xira. Disciplina e técnica são as grandes apostas do matador que está empenhado em elevar a fasquia na escola que ajuda a formar novas figuras do toureio.
O toureiro que o espectador se habituou a ver envergando cintilantes trajes de luzes aparece de fato de treino e ténis no cabo da lezíria para dar mais uma lição a 17 aspirantes a toureiros. A alma de “maestro” descobre-se nos pequenos gestos, na pose erecta do corpo e na forma de movimentar-se.
Victor Manuel Valentim Mendes nasceu em Marinhais a 14 de Fevereiro de 1958 e foi baptizado na Igreja de São João em Coruche, onde o pai era cabo da GNR. Cresceu em Vila Franca de Xira para onde foi viver com quatro anos de idade, na altura em que o pai passou a ser escrivão do tribunal local. A mãe trabalhava a dias para ajudar o orçamento familiar.
O gosto pelos toiros despertou logo na Escola do Bacalhau onde fez a instrução primária. O pai, que era aficionado e via com bons olhos o gosto do filho pela festa brava, pediu ao maestro José Júlio que lhe desse as primeiras lições. Mais tarde Victor Mendes conheceu os irmãos Badajoz e foi António que o preparou para novilheiro e lhe apadrinhou a alternativa.
Em 1976, no âmbito do serviço cívico estudantil, Victor Mendes foi colocado na escola de Benavente para ajudar analfabetos a ler e escrever e prepará-los para o exame da quarta classe. Foi uma experiência única ter alunos com idade para ser seus avós. O matador tinha acabado o sétimo ano do liceu e preparava-se para entrar na Faculdade de Direito porque ambicionava ser advogado. O pai lidava de perto com a justiça e muitas vezes ajudava os mais pobres a resolver alguns problemas. O curso superior – que ainda tem esperanças de concluir – foi trocado pelas arenas.
Victor Mendes foi figura mundial, triunfou nas principais praças e destacou-se pela sua humildade, inteligência, coragem e facilidade de chegar ao público com simpatia e emoção. Toureou em mais de mil corridas. Foi o toureiro português que mais triunfos alcançou em Espanha, França e América Latina. Curiosamente foi em Portugal que realizou o menor número de corridas. Tem o corpo marcado por dezanove cornadas que são o mapa da sua peregrinação por uma profissão onde poucos triunfam.
O museu de dois pisos é o prolongamento da sua casa num sítio privilegiado de Vila Franca de Xira. Cabeças de toiros embalsamadas, pinturas, fotografias, esculturas, livros, revistas e trajes de luzes evocam uma carreira repleta de sucessos.
É casado e tem três filhos: Diogo, António e Pedro. É crente. Costuma entrar nas igrejas para estar com Deus. Chegou a estar às portas da morte e diz que se agarrou à dor como forma de se agarrar à vida. Costuma sorrir na praça para afastar o medo. Já se despediu da arena, mas não consegue arrumar o capote a muleta.
Fonte: O Mirante
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